EXPERIÊNCIA - tive covid no Japão, no início da pandemia

 



Convivendo com pandemia trabalhando em Tokyo

Era o final de 2019 quando ouvi falar da primeira notícia sobre uma nova forma de "influenza" na China.

Quando o ano novo chegou, o que começou como uma pequena notícia em uma cidade do interior da China se transformou rapidamente em uma grande epidemia que se espalhou pelo país, alcançando até mesmo Xangai.

A primeira medida a ser tomada foi em relação aos funcionários de nosso escritório na China.

Janeiro de 2020.

Paramos de frequentar a igreja internacional, frequentada por pessoas de todo o mundo, e passamos rapidamente a assistir aos cultos online.

No ambiente de trabalho, foi anunciado que todas as decisões seriam de responsabilidade individual. Quem quisesse retornar ao Japão poderia fazê-lo, mas a empresa não cobriria os custos das passagens de ida e volta. Quem decidisse voltar deveria estar disposto a permanecer.


Muitas pessoas optaram por ficar, incluindo o expatriado que estava na China.


Aqueles que tinham problemas de saúde, como asma (grupo de risco), optaram por voltar.


Tínhamos um sistema contábil completamente consolidado, preparado para enfrentar o pior cenário possível.

O que veio a seguir, como o lockdown, o trabalho remoto e a gestão à distância, não representou um problema para nossa empresa nas filiais ao redor do mundo.

No Japão, a história foi diferente. 


Ainda estávamos em processo de unificar gradualmente o sistema de gestão bem-sucedido nas filiais globais, para aplicá-lo no Japão. A sede japonesa incluía mais duas empresas, três setores de negócios e um novo modelo comercial, que ainda não estavam consolidados.

Pura baderna. 

Tentar colocar em ordem o que já estava desorganizado, de forma online e remota, era uma tarefa impossível. Isso se tornava ainda mais desafiador, considerando o apego dos japoneses às rotinas diárias.

Quebrar a rotina de bater o ponto todos os dias no mesmo horário...


Essa guerra era cada um se vira. 


Como era a minha rotina.

Desde início de 2020, a minha rotina era assim: 


  • Carregar 5 máscaras de pano. (pois as descartáveis só se tornaram acessíveis no final daquele ano)
  • Tentar ficar mais perto da janela no trem. 
  • Lavar as mãos a cada uma hora. (pois o álcool em gel sumiram dos mercados e só voltaram em final de 2020).
  • Sempre levar um oniguiri, pois era rápido para comer e não usava talheres.
  • Levar bebida de casa. (não usar o bebedouro)
  • Tirar a roupa na entrada de casa, lavar roupa imediatamente, tomar banho e lavar o cabelo, antes mesmo de cumprimentar outros membros da casa. 
  • Comer de lado a lado. (normalmente eu comia em pé na cozinha, pq chegava muito tarde)
  • Usar máscara em casa se sentir dor de garganta ou qualquer mal-estar. 


Sem contar que não saíamos, não viajávamos, não fomos em festa, e nem em quaisquer tipo de aglomeração. 

O nosso contato com outras pessoas era somente no trabalho>creche> online. 


Participamos apenas uma vez de uma igreja ao ar livre no parque durante o verão.

Também tivemos um piquenique no outono, sempre usando máscaras, mantendo o distanciamento social e ao ar livre.

No ambiente de trabalho, especialmente na sede japonesa, foi uma batalha constante fazer com que os mais velhos entendessem a importância de usar máscaras, respeitar as reuniões virtuais e adotar medidas de segurança.


Até mesmo o dono da empresa costumava comer e beber em público sem usar máscara, ignorando as aglomerações.


Até que no verão de 2020, ocorreu o pior.


O primeiro infectado no trabalho

O menino que tinha contato com todos os funcionários, inclusive o dono, testou positivo com uma alta febre. Não demorou muito para descobrirmos que mais dois funcionários estavam hospitalizados com febre alta e problemas respiratórios.


Isso foi o gatilho que precisávamos para enfrentar uma situação difícil.


Por quê?


A sede da empresa onde trabalho possui apenas um andar, sem divisões físicas entre as áreas. Nosso primeiro passo foi mapear e identificar possíveis infectados. Foi exatamente o que comecei a fazer assim que cheguei, antes mesmo de colocar minha bolsa na mesa.


Eu tinha recebido a notícia de que os dois setores próximos daquele em que o teste positivo foi identificado haviam sido mandados para casa.


No entanto, eu não vi ninguém realmente saindo para casa. O que vi foram pessoas trabalhando como se nada tivesse acontecido.


Nosso COO, meu chefe direto, havia instruído os gerentes desses setores a saírem e trabalharem de casa. No entanto, eles deixaram cerca de 20 subordinados ali, sem informações, alegando que o COO "não havia instruído sobre instruções".


Foi nesse momento que minha paciência esgotou.


Deve ter sido algo memorável. Eu já havia discutido com meu chefe várias vezes, mas nunca na frente de todos.


Falei diretamente com o dono da empresa, dizendo que esses gerentes que haviam ido embora, abandonando seus subordinados, não deveriam mais voltar. Estávamos em uma situação crítica, e os gerentes deveriam ser os últimos a sair, não os primeiros.

Esse episódio mudou a atitude do dono.


Ele passou a usar máscara, aceitar reuniões online, ser mais flexível com as opiniões dos outros e permitir que aqueles que testaram positivo ou tinham familiares nessa situação trabalhassem de casa.


Para alguém que antes não aceitava que funcionários faltassem ao trabalho por causa de febre, que insistia em reuniões presenciais com clientes, e até obrigava os funcionários de nível mais baixo a jantar com ele quase todos os dias, isso foi um grande progresso.


Para evitar a propagação na empresa, todos que podiam trabalhar remotamente foram orientados a fazê-lo. Eu não tive essa opção.

Sendo a mais antiga e experiente em gerenciamento, responsável pela equipe administrativa pela metade, eu ia ao escritório todos os dias durante a pandemia. Era a única que podia cuidar do servidor e auxiliar quem estava trabalhando de casa (e, é claro, não era possível levar o servidor para casa).

E assim foi como passamos por 2020.


Em 2021

Ao adentrarmos em 2021, as pessoas já estavam completamente habituadas à situação da pandemia. Com a aproximação do término do ano letivo e a transição para o novo ano fiscal, os trens passaram a registrar lotações novamente.


Nas noites de sexta-feira, começaram a surgir indivíduos embriagados, alguns sem máscara, e pessoas falando em voz alta dentro do trem.


Apesar de os restaurantes terem que fechar às 20 horas, muitos saíam do trabalho mais cedo com o intuito de aproveitar para consumir bebidas alcoólicas.


(Esse é o motivo pelo qual as pessoas saem mais cedo, não é mesmo?)


Tokyo não tinha tanto movimento. 

À medida que me aproximava de casa, notava que muitas pessoas saíam e frequentavam os lugares mais próximos.

Em aglomeração de gente.


Escola estava funcionando normalmente. 

Molecada falando alto, jogando suas mochilas no meio do caminho dentro do trem, na plataforma, como o tempo tivesse voltado ao que era antes da pandemia.  


Mais clientes estavam requerendo reuniões presenciais. Aqueles mesmos clientes que pedia que fosse pelo zoom em 2020. 


Na tv, voltou as programações com entrevista na rua. 

Apresentadores nos estúdios com "plaquinha de plástico" entre si. 

E eu continuo imaginado se "plaquinha" é móvel para quando a câmera ficar off, e saírem da cena. 


Eu estava completamente exausta devido ao encerramento do ano fiscal e às numerosas alterações no setor de Recursos Humanos. 


Tive que cumprir várias horas extras em março e abril.


Mesmo com a chegada da Golden Week, ficamos reclusos em casa.

Minha saúde não estava no seu melhor estado, e estávamos ainda sem vacina.


Passando mal

Maio e Junho de 2020, marcam um período de transição climática no Japão, no qual muitas pessoas enfrentam desconfortos devido às mudanças súbitas de temperatura, dias consecutivos de chuva e ao cansaço acumulado do trabalho.


Eu já não me sentia bem, com desconfortos na barriga, ombros e coluna, e havia uma urgente necessidade de pintar e cortar o cabelo.


Nesse cenário, surgiu mais um caso positivo na empresa. No entanto, o teste positivo ocorreu após o término da Golden Week, e ninguém, incluindo eu, havia tido contato com essa pessoa.


Uma semana depois, comecei a sentir dores de cabeça intensas e desconforto nos ombros. Dado que passo 8 horas seguidas em frente ao computador com dois monitores, era quase rotineiro ter dores de cabeça no final do dia.


Entretanto, algo mudou no meio de maio. A dor de cabeça se tornou intensa, uma sensação similar a estar afogando e ingerindo muita água, que parecia subir em direção à cabeça. Isso era frequentemente acompanhado por febre, ainda que não fosse alta, mantendo-se em torno de 37.5 graus. Ao tomar um remédio para gripes, a febre e a dor desapareciam, mas quando o efeito do remédio passava, esses sintomas ressurgiam.


Comecei a suspeitar que poderia estar sofrendo um derrame, porém minhas pesquisas com o doutor Google também indicavam a possibilidade de ser depressão ou até mesmo leucemia.


Devido a esses sintomas, decidi consultar um médico e solicitei uma tomografia.



Indo no Médico no Japão

Devido à febre, fui encaminhada para um espaço improvisado destinado apenas ao atendimento de pessoas com febre e sintomas de gripe.


Logo após, fui atendida por um médico vestido inteiramente de branco, usando uma capa de proteção para casos de alto contágio e separado por uma barreira de plástico. Compreendi então que seria submetida a um exame de tomografia computadorizada (CT), que é mais ágil que a ressonância magnética (MRI) pois focaliza apenas na área necessária.


A espera pelo resultado foi prolongada, mas quando finalmente saiu, foi um alívio: limpo, sem indícios de derrame, sinusite ou qualquer problema aparente.


O médico sugeriu fazer um teste PCR como medida de precaução, e eu concordei, embora já tivesse passado por esse tipo de teste várias vezes. Eu sou uma cliente frequente dos testes de Influenza comum, apesar de receber a vacina anual. Estou bastante acostumada com o desconforto do cotonete enfiado no nariz e garganta.


No entanto, dessa vez foi diferente. Doeu consideravelmente. A dor foi intensa a ponto de chegar a perder alguns segundos de consciência.


Nesse momento, já estava bastante afastada da minha família. Lidando com dores de cabeça, inúmeras tarefas de estudo, trabalho acumulado e atendimento aos clientes. O som dos gritos infantis ecoava e reverberava nas profundezas do meu cérebro.


O teste foi realizado numa manhã de sábado e o resultado foi comunicado por telefone na tarde de segunda-feira.


O Procedimento para quarentena

O hospital fez uma ligação apenas para comunicar o resultado. Em seguida, foram 1 hora e 44 minutos de angústia, sem ter uma clara ideia do que deveria fazer.


Logo após, recebi uma ligação do Hokenjo, que é a secretaria municipal de saúde.


O primeiro atendente que me ligou fez diversas perguntas de maneira bem-humorada e divertida, porém objetiva e cheia de informações. Ele indagou sobre onde trabalho, como está minha família, se tenho um espaço separado para dormir em casa, se há comida na geladeira, entre outras coisas. Ele me assegurou que entraria em contato com meu marido e que observaria a situação da família e minha saúde.


Em seguida, meu marido recebeu a ligação. Tanto ele quanto minha filha foram considerados casos de alto risco de contágio e tiveram os testes PCR agendados.


No total, passamos um pouco mais de 3 horas conversando com três atendentes, que nos orientaram detalhadamente sobre como passar o período de quarentena em casa.


Dois pontos me surpreenderam particularmente:


1) A atendente explicou que eu poderia sofrer um ataque de pânico durante a noite. Inicialmente, não dei muita atenção, pois estava mais preocupada com as datas. Embora eu pudesse retornar ao trabalho após baixar a febre, meu marido e filha não poderiam. Eles precisariam cumprir mais duas semanas de quarentena. Eu já estava calculando o impacto financeiro que isso causaria. A atendente ligou para meu marido separadamente, anotou números de emergência e instruiu a chamar a ambulância caso a crise evoluísse para problemas respiratórios. O ataque de pânico ocorreu durante a noite e foi surreal, pois estava assistindo a uma peça de Kabuki no YouTube e chorava desesperadamente, mesmo que não fosse uma peça dramática.


2) Ofereceram-se para enviar alimentos, incluindo lenços de papel e papel higiênico. Eu acreditava que a comida fornecida pelo governo era destinada apenas a pessoas internadas ou em quarentena em hotéis. Aparentemente, mesmo as pessoas que optam por ficar em casa têm direito a esse benefício para evitar saídas para compras. Mesmo sendo vegetariana, não mencionei isso. Montar uma cesta básica parecia mais conveniente para não sobrecarregar ninguém com a verificação do que poderiam ou não enviar. Recebemos cerca de 3 rolos de papel higiênico, uma caixa de lenços, dois pacotinhos de suco, um pacote de chá, uma caixinha com uns 5 pães doces, 2 curry sem carne, sopa de missô instantânea e principalmente arroz instantâneo. Meu marido ainda perguntou se eu havia mencionado que era vegetariana.


Os resultados dos testes PCR realizados por meu marido e filha saíram no mesmo dia, ambos negativos. A secretaria de saúde ligava diariamente, uma vez para mim e outra para o meu marido, para verificar a temperatura, oxigenação e sintomas, tudo por telefone.


No meu caso, não tive tosse ou falta de ar grave. O que experimentei foi uma febre baixa, em torno de 37 graus, uma dor de cabeça intensa que me impossibilitou até mesmo de caminhar, perda do olfato e do paladar. Entretanto, não foi uma perda total do paladar; ainda conseguia sentir bem o sabor da Coca-Cola, mas apenas os sabores mais simples, como o sal dos alimentos, o doce da banana e o azedo da maionese. Minha capacidade de comer normalmente diminuiu drasticamente, reduzindo pela metade a quantidade do que consumo.


O tratamento contínuo em casa

O medicamento prescrito pelo médico não apresentou qualquer melhora significativa.


Curiosamente, os remédios de farmácia tiveram um efeito mais perceptível.


Só poderei receber "alta" após permanecer três dias sem febre ou dores de cabeça, sem recorrer ao uso do medicamento. Somente nesse momento terá início a contagem dos 10 dias de quarentena para meu marido e minha filha, visando assegurar que não os tenha contaminado.


O cenário é interessante, já que eu poderia voltar ao trabalho enquanto meu marido não teria essa permissão.


Determinar a origem da infecção é impossível. Nenhuma entidade governamental ou mesmo o hospital admitirá que a contaminação possa ter ocorrido no ambiente de trabalho ou nos trens commuter superlotados. Afinal, para eles, "se você estiver usando máscara o tempo todo, não há risco de contágio".


Assim, a dúvida sobre onde fui infectada permanece.


O que mais me ajudou durante quarentena.

O que realmente foi de grande auxílio durante minha quarentena foi a minha fluência em japonês, tanto para falar quanto para ler.


O idioma do país se tornou uma necessidade vital para se manter informada. Todas as comunicações foram conduzidas em japonês. Fui eu mesma quem entrou em contato com meu trabalho e a creche da minha filha para explicar a situação.


A pandemia é comparável a uma guerra. O governo não está obrigado a disponibilizar atendentes fluentes em línguas estrangeiras para cuidar dos doentes.


Ter a habilidade de me comunicar foi o maior trunfo nesse período.


Cicatriz que ficou

Fui liberada do Covid-19 sem a necessidade de intervenções mecânicas. No entanto, meu olfato e paladar não retornaram ao normal. Levou mais de um ano até que meu olfato começasse a se recuperar. Até mesmo o cheiro da caixa de areia do gato era imperceptível. Gás... fique bom tempo sem cozinhar pois não sentia nem o cheiro do gás. 

Quanto ao paladar, permita-me compartilhar que possuía um paladar excepcional. Nunca fui inclinada à culinária, embora minha mãe tenha escolhido meu nome em japonês a partir do kanji da palavra "Ryouri" (que significa cozinha), na esperança de que eu me tornasse uma cozinheira talentosa. Era o desejo dela, que, infelizmente, não segui devido à minha rebelião.

Muitas pessoas costumam dizer que, se tudo der errado, vão se tornar hippies. Eu costumava brincar que, se as coisas não dessem certo, me tornaria uma consultora ou crítica gastronômica.

Passaram-se anos, mas meu paladar ainda não se recuperou completamente.

Eu consigo sentir os sabores, mas já não sou capaz de identificar as mil especiarias que compõem o curry indiano.

Inclusive, não posto mais opiniões sobre comida japonesa comparando como comida brasileira no Instagram desde então. 

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